O autor prevê que o mercado jurídico mudará mais nos próximos 20 anos do que nos últimos 2 séculos
Introdução
Lembro claramente da experiência de ler Tomorrow’s Lawyers: An Introduction to Your Future, ainda sem tradução para o português, do pesquisador britânico Richard Susskind. O livro me impressionou ao apresentar uma perspectiva de mercado da advocacia que, embora parecesse distante para um estudante de direito no Brasil, estava em consonância com avanços tecnológicos que vemos em outros mercados e internacionalmente.
O autor propõe que o mercado jurídico mudará mais nos próximos 20 anos do que nos últimos dois séculos.
Por um lado, Susskind descreve um futuro em que o mercado jurídico é liberalizado e serviços advocatícios são comoditizados através do uso da tecnologia. Por outro, haveria redução da litigiosidade, e formas adequadas de solução de conflito ganhariam proeminência. Advogados deixariam de advogar para assumir postos como engenheiros jurídicos, gerentes de projeto, cientistas de dados, gestores de risco, etc.
Em meio a mudanças tão vertiginosas, é impossível não nos perguntarmos: para que estudar direito? Não seria melhor aprender programação e ciência de dados?
No capítulo Training Lawyers for What? o autor aborda exatamente essa questão. É necessário revisar a grade curricular das graduações em direito, para equipar estudantes para um futuro em que a prática jurídica será bem diferente de hoje. Além disso, um maior intercâmbio entre mercado e academia pode aproximar os alunos das habilidades que deverão desenvolver no futuro.
Já no capítulo final, Artificial Intelligence and the Long Term, Susskind confessa que, antes de ser autor e consultor, concluiu seu doutorado em Direito e Inteligência Artificial, isso nos anos 1980. A tese central é de que: advogados humanos serão superados pelo poder bruto de processamento e algoritmos notáveis [da IA], que operam com grandes conjuntos de dados¹. O diferencial que os advogados têm a oferecer é a adaptabilidade e o conhecimento:
Os advogados têm conhecimento, perícia, experiência, discernimento e compreensão que podem aplicar às circunstâncias específicas dos casos de seus clientes. Os advogados detêm conhecimento e experiência que seus clientes não possuem.²
Trazemos abaixo a tradução parcial de uma fala concedida por Richard Susskind no painel Online Courts and the Future of Justice, no encontro anual da American Bar Association, em agosto de 2020³.
Um caminho melhor para a justiça
"O maior empecilho para a prestação de serviços jurídicos são os próprios advogados", disse Susskind. Ele acrescentou que isso não é proposital e insistiu que os advogados não estão tentando limitar o acesso à justiça. Ele só acredita que os advogados estão “profundamente entricheirados” em sua forma de trabalhar, e que é difícil mudar.
Ele disse que o judiciário "custa demais, leva tempo demais e é ininteligível, a não ser que você seja advogado". O que precisa mudar é a “mentalidade” dos advogados. Ele ressaltou que o acesso à justiça é “estratificado”, onde certos profissionais jurídicos apenas apenas certos tipos de clientes. Ele classificou como “uma vergonha” o fato de que tantas pessoas não possam ter acesso à justiça, citando um estudo da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) que mostra que menos da metade das pessoas tem, de fato, acesso à justiça.
Susskind vê a pandemia de COVID-19 como um “experimento gigantesco não programado” para novos processos de prestação de serviços jurídicos, que possibilitou às pessoas verificar o que funciona e o que não funciona. Os procedimentos judiciais foram forçados a se adaptar e mudar para uma plataforma digital. A alternativa — a possibilidade de que ninguém tenha acesso à justiça — foi o que Susskind descreveu como “um momento assustador”.
Ele apontou como a mudança para calls e reuniões on-line expôs um pouco as pessoas. Advogados e juízes não tinham suporte técnico e estavam sozinhos em seus porões tentando gerenciar novas tecnologias. Susskind descreveu essa experiência como "um exercício de humildade e construção de caráter, que igualou as pessoas." Também disse que o experimento forçado ajudou as pessoas a desenvolver novas habilidades e eficiências.
No futuro, Susskind acredita que as faculdades de direito devem ajudar os novos advogados a se sentirem à vontade com a prestação de serviços digitais. Ele disse que entre advogados praticantes, os mais velhos estão mais abertos a novos processos e os advogados mais jovens tendem a ser mais conservadores.
Susskind alertou contra o impulso de “simplesmente jogar os processos atuais de trabalho no Zoom”. Ele disse que o verdadeiro poder da tecnologia deve ser permitir que os advogados atinjam seus objetivos fundamentais, usando-a para prestar serviços judiciais de maneira diferente e não simplesmente para automatizar sua forma atual de conduzir os negócios.
“Se você tivesse que começar com uma folha de papel em branco e projetar um sistema de justiça a partir do zero … você construiria um artifício muito diferente do que já foi projetado?” Perguntou Susskind. Ele ressaltou a importância de se concentrar mais no objetivo do que no processo.
Susskind também disse que as pessoas não querem advogados — elas querem justiça. Então, os advogados devem procurar maneiras de fazer com que a tecnologia proporcione essa justiça.
Martinez e Susskind também discutiram reformas regulatórias para a prática do direito. Susskind acredita que os consumidores de serviços jurídicos devem ter mais opções e que os regulamentos devem ser afrouxados. Ele disse que a Grã-Bretanha relaxou os regulamentos em 2011 e a mudança não resultou em desastre.
“Os advogados devem prosperar porque trazem valor”, disse ele. "E não porque expulsam os outros através de regulamentos."
Susskind acredita que as regras e os procedimentos judiciais devem ser simplificados e que ferramentas devem estar disponíveis no início do processo para negociar e resolver problemas, em vez de litigar. Ele chama isso de “contenção de disputas” em vez de resolução de disputas. “É melhor ter uma cerca no topo de um penhasco do que uma ambulância no fundo”, disse ele.
Embora Susskind deseje que a profissão jurídica avance, ele não está defendendo a completa digitalização dos processos judiciais pós-pandemia. Julgamentos presenciais, especialmente por crimes graves, são importantes, disse ele. E embora ele não queira voltar à velha forma de atuar, ele também não acredita que uma grande transformação possa ser realizada da noite para o dia. Ela deve ser alcançada de forma gradual.
¹ human lawyers will be outgunned by brute processing power and remarkable algorithms, operating on large bodies of data. Tomorrow’s Lawyers. Richard. OUP. 2017.
² [...] lawyers have knowledge, expertise, experience, insight, and understanding that they can apply in the particular circumstances of their clients’ affairs. Lawyers have knowledge and experience that their clients lack. Tomorrow’s Lawyers. Richard. OUP. 2017.
³ American Bar Association. 2020. [Link]
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